Um olhar "complexo" sobre o papel da leitura na instauração 
da consciência planetária1

 

Regina Coeli Nacif da Costa e Vera Lúcia Costa (*)


Resumo:

Grande parte do fracasso no desempenho dos alunos costuma ser atribuído a falhas em seu comportamento-leitor.  Com base neste argumento, reputa-se ao professor de Língua Portuguesa a “culpa” pelo insucesso do aluno e a missão de levá-lo a superar as falhas de leitura.  Isso ocorre porque, no imaginário dos professores das outras disciplinas, o objeto do conhecimento específico de “sua área” é mais importante do que o sentido atribuído ao conhecimento.  Este artigo analisa esta questão com base na proposição de um sentido alfabetizador na intervenção do professor não só ligado à disciplina de Língua Portuguesa, mas também às demais disciplinas, derivado da necessidade de se construir um leitor do mundo, visto que “texto”, não é apenas um conjunto de signos lingüísticos, mas um universo muito mais amplo que envolve um conjunto de relações significativas individualizadas que se relacionam, ao entorno sócio – cultural do leitor.  A questão que se coloca aqui vem ao encontro da necessidade não só de “refletir para mudar, mas mudar para melhor pensar”, como afirma Edgar Morin, a fim de se criarem ferramentas para o trabalho do professor com a leitura, sob o ponto-de-vista sócio-interacionista, capaz de assegurar-lhe um espaço coerente entre as experiências curriculares que privilegiam a interdisciplinaridade e a formação de sujeitos para exercer a cidadania com autonomia.

O termo “leitura”, para a maioria dos professores evoca diversas interpretações, ainda que mais comum seja aquela que o define como “ato de ler textos escritos”.  De fato, alunos e professores buscam, durante toda a escolarização, o desenvolvimento da habilidade de ler textos escritos.  Entretanto, nos dias atuais, a diversidade de imaginários coletivos legitimados e agregados à Escola demanda que se compreenda o fenômeno “leitura” com base em conceitos que permitam ao professor definir um processo eficaz de desenvolvimento das habilidades necessárias à construção de um indivíduo leitor.

A escola precisa, portanto, de um a reflexão muito mais fundamental, precisa entender o que é leitura.  Só então será possível provocar, nos professores, nos pais e nos alunos uma tomada de consciência sobre o que é a leitura, a partir da sua própria prática, para derrotar as falsas noções que continuam sendo utilizadas como referências para a ação educativa, escolar e familiar.

Ler não é apenas passar os olhos por algo escrito, não é fazer a versão oral de um objeto escrito.  Quem ousaria dizer que sabe uma língua estrangeira só porque é capaz de pronunciar frases escritas naquela língua?

É nesse sentido que Foucambert2 afirma que:

“Ler significa ser questionado pelo mundo e por si mesmo, significa que certas respostas podem ser encontradas na escrita, significa poder ter acesso a essa escrita, significa construir uma resposta que integra parte das novas informações ao que já se é”.

Na verdade, as dificuldades de compreensão afetam diretamente o desempenho do aluno, não só no que diz respeito à área da linguagem, mas em todas as áreas do conhecimento e, o mais grave ainda, durante toda a sua vida escolar.

Entendendo a convivência do homem com o mundo como decorrente de uma leitura por ele realizada – uma leitura intuitiva e/ou uma leitura escolarizada – é que se enfatiza hoje a leitura como canal que, levando ao saber, leva à cidadania plena.

A escola, tal como se encontra hoje, tem funcionado no sentido inverso, em uma relação de imposição de verdades por parte daqueles que ensinam, contribuindo cada vez mais para perpetuação das desigualdades sociais, resultantes de um modelo teórico que, por ser muito restrito, impede que o professor entre em diálogo com as realidades múltiplas do aluno, relativamente à questão de produção e leitura do texto.

É nesse sentido que MARQUES3 afirma:

“Imersa em sua cultura – ambiente, a escola é, por ela, penetrada, não podendo, por isso, colocar-se à margem dos dinamismos sócio-culturais, sob pena de se condenar à inércia e à defasagem histórica.  Destarte, as novas tecnologias da informação, mais do que recursos especialmente para o trabalho em sala de aula, desafios outros que se imprimem às distintas articulações de linguagens, ao mundo, à sociedade, à cultura e às identidade sociais e singularizadas”.

As condições da produção da leitura são relevantes, quando queremos analisar as questões relacionadas à sua prática na Escola, no final do séc. XX.  As questões relacionadas ao perfil do sujeito – leitor e as condições histórico-sociais em que este se encontra imerso são primordiais para o entendimento das mudanças por que passou a Escola, que hoje já não está respondendo mais às indagações do aluno, diante das novas maneiras de pensar e de conviver, que estão sendo elaboradas no mundo das telecomunicações e da informática.

Com certeza, não cabe o saudosismo, por parte dos professores, nem a queixa pela falta de perspectiva.  Cabe ao educador que pretende responder, junto com seu aluno, às indagações do mundo presente, não “adaptar-se”, pois esta ação, hoje, não atende à demanda da realidade tão múltipla em suas manifestações.  Não é possível falar em “adaptação”.  As novas tecnologias intelectuais desafiam.  O universo é aberto, conflituoso e parcialmente indeterminado.  “Nada está decidido a priori”.4

A pós-modernidade, assim denominada pela academia, vem tentar retratar as desigualdades resultantes dos ordenadores sociais da Idade Moderna.  A pós-modernidade intenta dar voz pública àqueles que foram marginalizados ou desacreditados pelo paradigma cientificista da Modernidade.

A filosofia pós-moderna representa de fato também uma extrema contra-reação ao auto-entendimento do moderno, que desde o séc. XIX via a ciência per se como uma consciência geral e daí constituía a idéia de que o homem poderia a priori tomar consciência de seu desenvolvimento histórico, colocar esse desenvolvimento em conceitos e daí expressar sua total liberdade ou modelar sua história, como um processo organizatório.  A Escola, nesse paradigma, ganha novos contornos.  O professor deixa de atuar com detentor de conhecimentos e técnicas e passa a atuar como pessoa.

Normas de valor e responsabilidades morais relacionam-se com a problemática do conhecimento.

A famosa “crise da leitura”, ao que parece, está centrada nessa dificuldade do professor, sobretudo da área técnico-científica, de perceber-se enquanto leitor e de considerar a existência de dois modos distintos de pensamento – o narrativo: não-linear, despreocupado, aberto ao cotidiano construído pelo próprio aluno e o científico: linear, organizado, aceito culturalmente e que é exigido pelo professor e, conseqüentemente, pela Escola.  O aluno chega à escola com o pensamento narrativo, e se “choca” com o pensamento científico que a escola lhe impõe, sem “mediações” na “passagem” de um paradigma para o outro, através da “zona de desenvolvimento proximal”.5

A postura da escola que quer formar cidadãos – leitores deve centrar-se na “construção de juízos”, de forma a garantir uma interpretação do mundo e isto só vai ocorrer se o professor partir do conhecimento que seu aluno já traz (pensamento narrativo) e, paulatinamente, através da zona de desenvolvimento proximal defendida por Vygotsky, levá-lo a atingir o pensamento organizado, cartesiano, lógico-científico.

Cabe assim, ao professor, reconhecer e legitimar, sem preconceitos, a existência de dois modos distintos de organização do pensamento: o narrativo e o científico, a partir do que poderá, efetivamente, promover o letramento do aluno, associando organicamente o saber escolar ao desenvolvimento da leitura social.

Outro equívoco que se tem observado é que, embora a leitura detenha um espaço privilegiado na experiência curricular da Escola Básica em todas as áreas curriculares, costuma-se identificá-la a atividades especificamente destinadas ao trabalho com a escrita, com a leitura/produção de textos verbais e não-verbais de caráter ficcional, restringindo-a às áreas das Ciências Humanas.6

A conseqüência disso é o fato de o aluno, não raramente, deixar de se perceber leitor em outras situações recorrentes no cotidiano da escola, especialmente, as que envolvam atividades técnico-matemáticas e a leitura de textos de caráter não-ficcional.

Hoje, mais do que nunca, face às exigências do mundo atual, a leitura tem um papel fundamental no processo de construção do conhecimento, funcionando como fio condutor na rede do currículo interdisciplinar, desenvolvendo competências e habilidades nas diferentes linguagens, para que o aluno tenha condições de aprender, por si próprio, ao longo da vida.

Hoje, é preciso inventar um novo modelo de Educação, já que estamos numa época que oferece a oportunidade de disseminar um outro tipo de pensamento.

É por isso que, no Ensino Fundamental e no Ensino Médio, a reforma de ensino deveria partir de questões fundamentais como: Quem somo nós? Para onde vamos?, reunindo conhecimentos de diferentes disciplinas.

Ainda  que as necessidades e as possibilidades de reforma sejam visíveis, nada se fará sem uma decisão forte.  Para superar isso, entre outras coisas, uma reforma do pensamento torna-se imprescindível, por intermédio da qual seja possível reintegrar um personagem que ela, a ciência do Homem, ignorou totalmente – isto é, o próprio Homem.

O pensamento complexo ajuda a evitar as cegueiras, os reducionismos, as concepções unilaterais, dogmáticas em todos os setores da vida, pois apela à compreensão humana e combate os maniqueísmos.

O elo essencial para alimentar o pensamento complexo está na relação entre o cognitivo e a ética.  A questão ética não é nunca a opção isolada entre nossas intenções e nossas decisões, entre si e si mesmo.  Ela precisa de pensamento de solidariedade.  Portanto, este trabalho de compreensão e solidariedade é um esforço ético que cabe a cada educador realizar.

Assim sendo, o trabalho do professor com a leitura deverá refletir esse esforço de tolerância não se atendo, somente, a condições singulares, locais, particulares, mas sim se abrindo às incertezas, pois nosso conhecimento é sempre limitado.

 


 

1 Trabalho apresentado no V Encontro de Pesquisas em Educação da região sudeste. Associação Nacional de pós-graduação e pesquisa em Educação.  Fórum de Coordenadores de pós-graduação em Educação.NOV/2002.

2 FOUCAMBERT (1994), p. 5

3 MARQUES, M. O. (1999). “A escola no computador: linguagens rearticuladas, educação outra”. Ijuí: Ed. UNIJUÍ, p. 19

4 LÉVY, P. “As Tecnologias da Inteligência: o futuro do pensamento na ra da informática. (1956). Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993.

5 Termo usado por Vygotsky e que indica a interação necessária entre o professor e aluno para que haja aprendizagem.

6 Termo usado nos Parâmetros Curriculares Nacionais (P.C.N.) e que englobam as disciplinas de História, Geografia, Filosofia, Sociologia...

 

(*) Professores de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira.
Mestres em Educação (UERJ)

 

 

Bibliografia:

FOUCAMBERT, J. (1994) A Criança, o professor e a leitura.  Trad: Marleine Cohen e Carlos Mendes Rosa. Porto Alegre: Artes médicas, 1998.

LÉVY, P. (1993). As Tecnologias da Inteligência: o futuro do pensamento na ra da informática. Tradução por Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Ed. 34, 1998.

LÉVY, P. (1999). Cibercultura. 2ª ed. Tradução por Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Ed. 34, 2000.

MARQUES, M. O. (1999). A escola no computador: linguagens rearticuladas, educação outra. Editora Unijuí, Rio Grande do Sul, 1999. (Coleção Fronteiras da Educação).

PENA-VEJA, A. & NASCIMENTO, E. P (org.). O pensar complexo: Edgar Morin e a crise da modernidade. Rio de Janeiro: Garamond, 1999.

PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS (P.C.N.)

SENNA, L. A. G. (2001). “Letramento e desarrollo humano em contextos interculturales. IN: Congresso Internacional Virtual de Psicologia Educativa. Islãs Balleares, Universidade de las Islas Ballares/Cibereduca. com

VYGOTSKY, L. S. (1998). A Formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

 


Instituto de Pesquisas Avançadas em Educação

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