Introduzindo ao racismo |
Peter Fry (*) A adoção de cotas no vestibular
de 2003 da Uerj resultou numa enxurrada de pedidos de mandados de segurança,
por parte de candidatos que se sentiram prejudicados. O mais pungente desses casos é o de Ricardo Menezes da
Silva, de 18 anos. Através de
uma reportagem publicada no GLOBO de 26 de fevereiro, soubemos que Ricardo
declarou como tal no momento da inscrição.
Apesar de ter feito 74 pontos no vestibular, não conseguiu vaga no
curso de direito da Uerj. “Entre
os estudantes da rede pública”, disse Ricardo, “teve gente que se
classificou com 58,75 pontos. Sou
contra a reserva de vagas e seria hipocrisia me candidatar à cota para
negros”. Para poder participar do vestibular
da Uerj, os candidatos tiveram que assinar um termo de compromisso aceitando
as novas regras do concurso. Podemos
apenas imaginar o dilema de Ricardo, contrário à reserva de vagas
para negros e pardos, ao deparar-se com a pergunta nº 24, do questionário:
“De acordo com o decreto nº 30.766, de 04/03/2002, declaro, sob penas da
lei, identificar-me como negro ou pardo: ( )S-Sim/( )N-Não”.
As instruções do edital advertem
que se o campo permanecer em branco, o preenchimento será
considerado “não”. Supondo
que não preencheu o campo, Ricardo virou uma espécie
de “branco honorário”. O
edital também adverte que os candidatos se definem racialmente “sob penas
da lei”. Sabe-se que a
autodeclaração foi adotada pelo consenso de que não há critérios
objetivos, por assim dizer para classificar os indivíduos
“racialmente”. Mas a lei
contradiz a si mesma! Ela afirma que não há critério objetivo de
classificação racial (o candidato se auto declara) e também afirma que há
critério objetivo (a frase “sob penas da lei” pressupõe a
possibilidade de fraude, o que por sua vez, pressupõe algum critério
objetivo para definir o status racial dos indivíduos). Ricardo Menezes da Silva é uma das
vítimas de uma brusca mudança na maneira pela qual a Assembléia Legislativa e o Executivo
do Estado do Rio de Janeiro pensam (ou não pensam), definem (ou não
definem) as supostas diferenças de “raça” quando distribuem valores,
representações, e, neste caso, bens públicos. Até a aprovação da lei das
cotas, o acesso às universidades públicas era legalmente determinado pela
capacidade dos candidatos de chegarem a uma certa pontuação numa prova que
ignorava o sexo e a cor (ou seja, as características adscritas pela
“natureza”) dos candidatos. A
ideologia que governava o vestibular era certamente “daltônica”, como
é a Constituição da República Federativa do Brasil, que, quando fala de
raça, o faz para repudiar o racismo e nunca para celebrá-lo como fator significativo na definição da
cidadania. Se poucos “negros e pardos”
entraram nas universidade públicas, não era por causa do racismo do exame
em si, mas pelas adversidades sofridas durante os anos escolares.
Agora, os cariocas que se candidatam a vagas nas universidades
estaduais serão obrigados a se classificarem racialmente.
E os que se dizem pardos e negros terão mais chances de entrar que
aqueles, como o negro Ricardo, que preferem tentar evitar a classificação
racial, ou aqueles que se declaram nem pardos nem negros. O extraordinário caso de Ricardo
Menezes da Silva, cuja eventualidade os legisladores sequer imaginaram
(afinal, lembremos, não houve nenhum debate), aponta para as conseqüências
lógicas da implementação de cotas. Em
primeiro lugar, as cotas representam um golpe fatal na ideologia do mérito
individual como guia para a admissão à universidade pública. Em segundo lugar, a sua implementação levou à criação de
um sistema de classificação racial que divide os candidatos em duas
categorias estanques, os que têm e os que não têm direito reserva de
vagas, ou seja, no fundo, brancos não-brancos
(a lei das cotas declara que não há distinção entre negros e pardos). A ameaça na frase “sob as penas
da lei” até incentivou o surgimento de patrulhas classificadoras que
acreditam saber objetivamente quem é negro ou pardo e quem não o é! O sistema de cotas veio para mudar
radicalmente a maneira pela qual devemos imaginar o Rio de Janeiro – não
mais a cidade maravilhosa da mistura e da confusão racial, mas como um
lugar cartesianamente dividido entre negros e pardos de um lado, e os
“outros” de outro. É isso mesmo que querem os defensores das cotas? Alguns sim, porque pensam que a
cidade já é dividida nessas linhas, mas muitos outros reconhecem os
perigos da racialização. Eles respondem a essa crítica alegando que a
implementação de cotas é medida emergencial, temporária. O que recusam
admitir é que essa lei já é alardeada como “conquista da população
negra”, assim ganhando ares de legitimidade e, conseqüentemente, permanência.
Além disso, não querem concordar que o mero fato de o estado chegar a
obrigar certos cidadãos a se classificar racialmente já em si consolida e
celebra divisões raciais. O drama de Ricardo é o drama de
uma sociedade que, de um dia para outro, e, repito, sem debate algum, se viu
radicalmente transformada por uma legislação que, como num passe de mágica,
reduziu drasticamente a possibilidade de o Rio de Janeiro encontrar soluções
para o seu racismo que não resultem necessariamente na celebração das
“raças”, As sociedades tradicionalmente
racializadas, em particular os estados Unidos da América, já estão
pensando em alternativas para escapar da camisa-de-força das “raças”
(aqui é bom lembrar que a Corte Suprema desta sociedade, pioneira da ação
afirmativa, declarou inconstitucionais cotas numéricas nas suas
universidades em 1978). Lá, há um número crescente de cidadãos demandado
serem reconhecidos independentemente da sua aparência ou origem “étnica”.
É de se perguntar então por que cargas d`água os legisladores do Rio
querem criar uma situação de que outras sociedades queriam escapar? -Todos nós sabemos das grandes e pequenas discriminações e humilhações que os cariocas mais escuros e mais pobres vivem cotidianamente.Todos nós gostaríamos de ver as universidades públicas cada vez mais multicoloridas (as privadas já são). Também acredito que a maioria quer que o Brasil elimine o racismo de tal jeito que a discriminação racial e o medo dela deixem de ferir tanto. Mas a “solução” das cotas vai aumentar os problemas, não diminuí-los. Alguém realmente acredita que é possível corrigir as desigualdades raciais grosseiras a custo zero aos cofres públicos? O verdadeiro custo será a consolidação do racialismo, não o fim do racismo.
(*) Professor de antropologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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