Nos
Estados Unidos, onde sempre esteve no centro do debate político e constitucional, a
questão racial atravessou três fases distintas. Na primeira, vigorou o regime de
escravidão, admitido expressamente pela Constituição de 1787. Após uma guerra civil e
mais de 500 mil mortos, teve início a segunda fase, denominada de iguais mas
separados: havia escolas, vagões de trem e banheiros exclusivos para brancos. A
terceira fase começou com uma célebre decisão da Suprema Corte, em 1954, contra a
segregação racial nas escolas, e desaguou no amplo movimento pelos direitos civis dos
negros, na década de 60.
Confrontada com suas culpas, a sociedade americana
adotou, em diversas áreas, a denominada ação afirmativa: políticas de
quotas e de vantagens competitivas para negros. Embora controvertida até hoje, a idéia
foi bem-sucedida e ajudou a consolidar uma classe média afro-americana.
No Brasil, um dos últimos países a abolir a escravidão, os negros iniciaram sua vida em
liberdade sob o peso dramático da miséria e da falta de acesso à educação formal. É
certo que, para bem e para mal, os mecanismos da segregação racial aqui foram mais sutis
e dissimulados, e, eventualmente, até atenuados por força da ampla miscigenação
racial. Mas a discriminação e o
preconceito desempenharam um papel inequívoco na exclusão social de grandes parcelas da
comunidade negra. Não se deve fechar os olhos a este fato evidente: a sociedade
brasileira tem uma dívida histórica com os afro-descendentes.
Posta a questão racial, veja-se agora o problema da universidade. O ensino superior tem
por função principal a produção e a transmissão de conhecimento, formando
profissionais que possam atender, com qualidade, às demandas da sociedade em áreas
diversas: tecnológica, humanidades, ciências médicas. Para desempenhar adequadamente a
sua missão, a universidade procura recrutar os melhores talentos, aferidos, na medida do
possível, por critérios objetivos e impessoais. O populismo nessa matéria leva à
mediocridade e ao colapso da educação de nível superior.
A Universidade do Estado do Rio de Janeiro tornou-se, na área de direito, uma referência
nacional. Obteve os três A do provão do MEC por seis anos consecutivos, e
seu programa de pós-graduação tem a nota máxima da Capes. À parte essas aferições
formais, os alunos do curso de graduação são, de longa data, os melhores classificados
em concursos públicos, e os mais requisitados pelos escritórios privados.
A produção acadêmica (teses e dissertações) de seus mestres e doutores é disputada
pelas principais editoras e festejada pela comunidade jurídica em todo o país. Com pouco
dinheiro, uma dose de idealismo, concursos sérios e sem concessão a tropicalismo
equívocos, produziu-se ensino público e gratuito de alta qualidade.
A questão é em si complexa, antes mesmo de se adicionar o complicador da definição de
quem. Afinal, deve ser considerado negro ou pardo. Existem dois valores socialmente
relevantes em contraposição: a) a necessidade de reparação histórica à comunidade
negra;e b) a necessidade de preservar ensino de qualidade e sistema de mérito na
universidade.
Quando esse tipo de conflito ocorre, o moderno direito constitucional determina a
utilização de uma técnica denominada de ponderação de valores; o intérprete deve
fazer concessões recíprocas entre eles, preservando o núcleo mínimo de cada um, com
base no princípio da razoabilidade.
Razoabilidade significa que a medida deve ser adequada ao fim ao qual se destina, não
pode restringir exclusivamente o direito de outrem e tem de trazer um benefício superior
ao dano que acarreta.
É possível defender, como ponderação razoável, uma cota em torno de 10% apta a
permitir a ascensão social do segmento desfavorecido, sem frustrar os objetivos do ensino
universitário. Quotas de 40% e de 50% são injustas e irrazoáveis porque: a) não são
adequadas a promover o fim visado, uma vez que sua conseqüência é a queda geral do
nível de ensino; b) violam em grau excessivo (e, por isso, ilegítimo) o princípio da
igualdade; c) acarretam um mal superior ao benefício que possam eventualmente trazer.
Houve clara precipitação na matéria, e é preciso dar um passo atrás, para em seguida
avançar.
(*) professor de direito constitucional da Uerj.
(in O Globo - 28/02/03)