Racismo e papel da universidade

 

Luís Roberto Barroso (*)

Nos Estados Unidos, onde sempre esteve no centro do debate político e constitucional, a questão racial atravessou três fases distintas. Na primeira, vigorou o regime de escravidão, admitido expressamente pela Constituição de 1787. Após uma guerra civil e mais de 500 mil mortos, teve início a segunda fase, denominada de “iguais mas separados”: havia escolas, vagões de trem e banheiros exclusivos para brancos. A terceira fase começou com uma célebre decisão da Suprema Corte, em 1954, contra a segregação racial nas escolas, e desaguou no amplo movimento pelos direitos civis dos negros, na década de 60.

Confrontada com suas culpas, a sociedade americana adotou, em diversas áreas, a denominada “ação afirmativa”: políticas de quotas e de vantagens competitivas para negros. Embora controvertida até hoje, a idéia foi bem-sucedida e ajudou a consolidar uma classe média “afro-americana”.

No Brasil, um dos últimos países a abolir a escravidão, os negros iniciaram sua vida em liberdade sob o peso dramático da miséria e da falta de acesso à educação formal. É certo que, para bem e para mal, os mecanismos da segregação racial aqui foram mais sutis e dissimulados, e, eventualmente, até atenuados por força da ampla miscigenação racial. Mas a discriminação e o preconceito desempenharam um papel inequívoco na exclusão social de grandes parcelas da comunidade negra. Não se deve fechar os olhos a este fato evidente: a sociedade brasileira tem uma dívida histórica com os afro-descendentes.

Posta a questão racial, veja-se agora o problema da universidade. O ensino superior tem por função principal a produção e a transmissão de conhecimento, formando profissionais que possam atender, com qualidade, às demandas da sociedade em áreas diversas: tecnológica, humanidades, ciências médicas. Para desempenhar adequadamente a sua missão, a universidade procura recrutar os melhores talentos, aferidos, na medida do possível, por critérios objetivos e impessoais. O populismo nessa matéria leva à mediocridade e ao colapso da educação de nível superior.

A Universidade do Estado do Rio de Janeiro tornou-se, na área de direito, uma referência nacional. Obteve os três “A” do provão do MEC por seis anos consecutivos, e seu programa de pós-graduação tem a nota máxima da Capes. À parte essas aferições formais, os alunos do curso de graduação são, de longa data, os melhores classificados em concursos públicos, e os mais requisitados pelos escritórios privados. A produção acadêmica (teses e dissertações) de seus mestres e doutores é disputada pelas principais editoras e festejada pela comunidade jurídica em todo o país. Com pouco dinheiro, uma dose de idealismo, concursos sérios e sem concessão a tropicalismo equívocos, produziu-se ensino público e gratuito de alta qualidade.

A questão é em si complexa, antes mesmo de se adicionar o complicador da definição de quem. Afinal, deve ser considerado negro ou pardo. Existem dois valores socialmente relevantes em contraposição: a) a necessidade de reparação histórica à comunidade negra;e b) a necessidade de preservar ensino de qualidade e sistema de mérito na universidade. Quando esse tipo de conflito ocorre, o moderno direito constitucional determina a utilização de uma técnica denominada de ponderação de valores; o intérprete deve fazer concessões recíprocas entre eles, preservando o núcleo mínimo de cada um, com base no princípio da razoabilidade.

Razoabilidade significa que a medida deve ser adequada ao fim ao qual se destina, não pode restringir exclusivamente o direito de outrem e tem de trazer um benefício superior ao dano que acarreta.

É possível defender, como ponderação razoável, uma cota em torno de 10% apta a permitir a ascensão social do segmento desfavorecido, sem frustrar os objetivos do ensino universitário. Quotas de 40% e de 50% são injustas e irrazoáveis porque: a) não são adequadas a promover o fim visado, uma vez que sua conseqüência é a queda geral do nível de ensino; b) violam em grau excessivo (e, por isso, ilegítimo) o princípio da igualdade; c) acarretam um mal superior ao benefício que possam eventualmente trazer.

Houve clara precipitação na matéria, e é preciso dar um passo atrás, para em seguida avançar.

  (*) professor de direito constitucional da Uerj.

(in O Globo - 28/02/03)

 


Instituto de Pesquisas Avançadas em Educação

( 193 ) 01/03

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